Objetivos

Este blog faz parte do projeto de monitoria "Saber com sabor: o uso de recursos áudio-visuais e digitais no ensino de Literatura Alemã", coordenado pela Prof.ª Susana Kampff Lages, para as disciplinas da área de Literatura do Curso de Bacharelado e Licenciatura em Letras - Português/Alemão da Universidade Federal Fluminense. O blog tem como objetivo principal ser uma ferramenta de apoio no processo de ensino/aprendizagem dessas disciplinas. Imagens fotográficas e de obras de arte, trechos de peças de música clássica ou popular, trechos de filmes, trechos de obras literárias ou de crítica, traduções e outros materiais pertinentes à cultura literária alemã e aos temas tratados em aula poderão ser postados por estudantes e professores. O blog tende a ser um lugar tanto de diálogo entre docentes e estudantes, quanto de ajuda mútua entre os próprios estudantes, que assim podem trocar experiências de leitura e estudo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Heine por Gabriel Alonso

        Divulgação de trabalhos de estudantes de Letras - Alemão da UFF


  Para quem gosta de Heinrich Heine, aqui está uma excelente tradução de um poema.
Boa leitura!




Tradução de um poema de Heine – comentário e análise
por Gabriel Alonso



                                                     Meinen schönsten Liebesantrag
                                                    Suchst du ängstlich zu verneinen;
                                                    Frag’ ich dann: ob das ein Korb sey?
                                                   Fängst du plötzlich an zu weinen.

                                                   Selten bet’ ich, drum erhör’ mich,
                                                  Lieber Gott! Hilf dieser Dirne,
                                                  Trockne ihre süßen Thränen
                                                 Und erleuchte ihr Gehirne.

                                                 Tu procuras me negar
                                                 meu pedido, lido a cor.
                                                 E começas a chorar,
                                                “É um toco?” digo eu só.
 
                                                Nunca rezo, então me escuta,
                                                ó Senhor! ajuda a moça.
                                                Ao seu cérebro dá cura,
                                                seca as lágrimas, a poça.

Neue Gedichte, Verschiedene, Clarisse, 1. Trata-se de um poema sentimental-irônico de Heine. A temática básica é a da negação de uma proposta de casamento, à qual o poeta dá um tratamento irônico, como que, ao mesmo tempo, questionando a seriedade do sentimento. A rima de Dirne com Gehirne e a atitude zombeteira frente a Deus são os dois pontos fortes da ironia e servirão de pontapé para a análise.
Dirne poderia ser bem traduzido por rapariga, no duplo sentido de moça/ adolescente do sexo feminino (as duas primeiras entradas no Aurélio) e concubina/ meretriz (as duas últimas entradas no mesmo dicionário). O DWB (Deutsches Wörterbuch) dos Grimm dá, como primeira entrada, virgem, moça (na Idade Média, inclusive, um nome para Nossa Senhora) e, como última, prostituta, meretriz, sentido que é o único sobrevivente hoje. A rima com um objeto tão pouco amoroso como Gehirne (cérebro), ainda mais como última palavra do poema, acaba por quebrar essa aura positiva. Não custa lembrar que a estrutura simétrica trockne/ erleuchte (seca!/ ilumina!; na trad. seca/ dá cura) – süßen Thränen/ Gehirne (doces lágrimas/ cérebro; na trad. lágrimas/ cérebro) em
                Trockne ihre süßen Tränen
                Und erleuchte ihr Gehirne.”
reforça ainda mais o contraste entre delicadeza espiritual (também erleuchten tem forte conotação religiosa) e materialidade crua, quase científica.
A atitude de se aproveitar de bondade de Deus, usando como justificativa o fato de nunca rezar – a partícula d’rum (traduzida por então) dá essa conotação de “causa/ conclusão” –, é, entretanto, o primeiro indício da ironia no texto. Esse posicionamento cético é tipicamente heineano. Vide, por exemplo, o poema 35 da Heimkehr, no Buch der Lieder, ou as Schöpfungslieder, no mesmo Neue Gedichte, canções de profunda implicação poetológica. O tom popularesco das apócopes e de uma síncope (bet’ por bete, d’rum por darum e erhör por erhöre), além disso, contrastam com o tom elevado do mais bonito pedido de amor (meinen schönsten Liebesantrag), aqui traduzido por lido a cor.[1]
Sobre a tradução, por sinal, procurei dar relevo aos aspectos sonoros e ao efeito geral do poema. Se o texto-fonte foi composto em tetrâmetros trocaicos (– . – . – . – .), utilizei-me da redondilha maior, também de tom popularesco[2], com acentos também regulares (3–7). Trata-se de um aspecto importante, já que essa simplicidade de tom espelha a atmosfera sentimental, e que, no contraste com a reação do eu lírico, confere mais intensidade à ironia. As rimas no esquema ABCB foram transformadas em consoantes ABAB – com dois pequenos deslizes toantes: cor/ e escuta/ cura – porque, no português, possuem mais sonoridade do que teria o equivalente alemão. Deve-se lembrar que a força dos acentos nas línguas germânicas – que justifica a contagem métrica dita acentual, frente à silábica nas línguas latinas – já por si faz prescindir, em parte, da rima, por conta da musicalidade cadente.
Com relação a decisões pontuais de tradução, a mais marcante é, com certeza, “é um toco?”. Essa foi uma maneira sincrônica, atual – e desviante – de traduzir a expressão secular einen Korb geben/ bekommen (literalmente, dar/ receber uma cesta), que quer dizer rejeitar um pedido amoroso ou de casamento.[3] Minha opção procurou rejuvenescer o texto heineano. Cito Berman (2002: 122): “Arrancado de seu solo, o poema corre o risco de perder seu frescor. Mas o tradutor o coloca na taça da fresca de sua própria língua e ele floresce de novo, como se ainda estivesse sobre o solo materno”. Se se traduz por sobre o Tempo para um determinado tempo, tal escolha se justifica por si própria. Ela possui, entretanto, outras razões teóricas e práticas.
A primeira, com Venuti (1995), que defende a tradução como estrangeirização, como “pressão etnodesviante” (VENUTI, 1995: 20; trad. minha) nos valores (e na língua!) da cultura receptora. É na marca, na cicatriz – para usar a metáfora cirúrgica de Britto (2012: 38) – que se mostra a presença tradutória, a intervenção textual, os percursos da “grande viagem” interlinguística.
A razão prática, por sua vez, está em Vallias (2011: 33), que traduziu 120 poemas heineanos “almejando um tom coloquial com pátina – porém sem poeira ou teia de aranha”. Seus textos dão a lume, no tempo de hoje, um Heine palhaço, bobalhão, altamente moderno, um Heine que faz jus à sua própria poética e usa a fantasia[4] como bobo da corte (“Als Hofnarr [diene dir] meine Phantasie”, Die Nordsee, 1er Zyklus, 1 – Krönung).
Com a mesma visada etnodesviante – e também por efeitos métricos –, justifico o uso de lido a cor por lido de cor. Aí se revela a língua-outra, forçando a estrutura interna da língua-própria. Com relação a essa construção, o “desvio” de sentido não é total, na medida em que o tom de importância pomposa reforça a ironia. Além do mais, o fato de se ler o pedido pode evocar outros sentidos – mais modernos – de Antrag: requerimento, formulário, petição. E – não custa lembrar – toda leitura, mesmo a do “original”, faz-se no tempo (presente).
Por fim, as inversões finais – cérebro no penúltimo verso, poça depois de lágrimas –, como também a do quarto verso (digo eu só por logo que digo) foram constrições do sistema rítmico/ rímico. Se enfraquecem a ironia final, esta vê-se, entretanto, compensada em outros pontos. O resultado final, acreditamos, não é de todo ruim. Mas se trata – obviamente – de um work in progress, cuja tendência é, para jogar com uma phrase de nossos dias, agregar valor (semântico, histórico, etc.).

Gabriel Alonso é estudante de Letras–Português/ Alemão na Universidade Federal Fluminense (UFF). Durante dois anos, desenvolveu pesquisa, com financiamento da UFF, sobre as traduções de Heinrich Heine no Brasil, sob a orientação da profa. Susana K. Lages. O texto aqui redigido resulta de um trabalho experimental de tradução.

Bibliografia:
Em livros:
BARRENTO, João. O Poço de Babel: para um poética da tradução literária. Lisboa: Relógio d’Água, 2002.
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romãntica. Trad. Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002.
BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação mefistofáustica. In: ______________. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981, pp. 178-209.
VALLIAS, André. Heine, hein?: poeta dos contrários. São Paulo: Perspectiva/ Goethe-Institut, 2011.
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History of Translation. London/ New York: Routledge, 1995.
Em sites:
DWB. Disponível em: http://woerterbuchnetz.de/DWB (acesso em 20/11/2013).
HEINE, Heinrich. Neue Gedichte. Düsseldorfer Heine Ausgabe. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1983.


[1] Sobre erhören, o DWB dá: 1) perceber com o ouvido, audire e 2) preces admittere, exorari, i.e. com o sentido – que é o atual – de atender a um pedido (Bitte, relacionado etimologicamente a beten). É o imperativo usado na liturgia e na Bíblia para pedir a Deus: Wir bitten dich, erhöre uns! (Nós vos pedimos, atendei a nossa prece!). Nossa escolha baseou-se na rima.
[2] V. Barrento (2002: 42): “quatro versos originais com quatro pés trocaicos cada (um pé métrico mais vivo do que o jambo, mais habitual na poesia de raiz popular)”.
[3] Reler o passado em modo sincrônico: “de certo modo, isso é inevitável, pois se a tradução é uma leitura da tradição, só aquela ingênua e não crítica – que se confine ao museológico [...] recusar-se-á ao ‘salto tigrino’ (W. Benjamin) do sincrônico sobre o diacrônico” (CAMPOS, 1981: 188).
[4] DWB, 1a: die schöpferische, besonders dichterische einbildungskraft – a imaginação criadora, especialmente poética.
 

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