Neue Gedichte, Verschiedene,
Clarisse, 1. Trata-se de um poema sentimental-irônico de Heine. A temática
básica é a da negação de uma proposta de casamento, à qual o poeta dá um
tratamento irônico, como que, ao mesmo tempo, questionando a seriedade do
sentimento. A rima de Dirne com Gehirne e a atitude zombeteira frente a
Deus são os dois pontos fortes da ironia e servirão de pontapé para a análise.
Dirne poderia ser bem traduzido por rapariga, no duplo sentido de moça/
adolescente do sexo feminino (as duas
primeiras entradas no Aurélio) e concubina/ meretriz (as duas últimas entradas no mesmo dicionário). O DWB (Deutsches Wörterbuch) dos Grimm dá, como
primeira entrada, virgem, moça (na Idade Média, inclusive, um
nome para Nossa Senhora) e, como última, prostituta,
meretriz, sentido que é o único sobrevivente
hoje. A rima com um objeto tão pouco amoroso como Gehirne (cérebro), ainda
mais como última palavra do poema, acaba por quebrar essa aura positiva. Não
custa lembrar que a estrutura simétrica trockne/
erleuchte (seca!/ ilumina!; na trad.
seca/ dá cura) – süßen Thränen/
Gehirne (doces lágrimas/ cérebro;
na trad. lágrimas/ cérebro) em
“Trockne ihre süßen Tränen
Und erleuchte ihr Gehirne.”
reforça ainda mais o contraste entre
delicadeza espiritual (também erleuchten
tem forte conotação religiosa) e materialidade crua, quase científica.
A atitude de se
aproveitar de bondade de Deus, usando como justificativa o fato de nunca rezar
– a partícula d’rum (traduzida por então) dá essa conotação de “causa/
conclusão” –, é, entretanto, o primeiro indício da ironia no texto. Esse
posicionamento cético é tipicamente heineano. Vide, por exemplo, o poema 35 da Heimkehr, no Buch der Lieder,
ou as Schöpfungslieder, no mesmo Neue Gedichte, canções de profunda
implicação poetológica. O tom popularesco das apócopes e de uma síncope (bet’ por bete, d’rum por darum e erhör por erhöre), além
disso, contrastam com o tom elevado do mais
bonito pedido de amor (meinen
schönsten Liebesantrag), aqui traduzido por lido a cor.
Sobre a tradução, por
sinal, procurei dar relevo aos aspectos sonoros e ao efeito geral do poema. Se
o texto-fonte foi composto em tetrâmetros trocaicos (– . – . – . – .),
utilizei-me da redondilha maior, também de tom popularesco,
com acentos também regulares (3–7). Trata-se de um aspecto importante, já que
essa simplicidade de tom espelha a atmosfera sentimental, e que, no contraste
com a reação do eu lírico, confere mais intensidade à ironia. As rimas no
esquema ABCB foram transformadas em consoantes ABAB – com dois pequenos
deslizes toantes: cor/ só e escuta/
cura – porque, no português, possuem
mais sonoridade do que teria o equivalente alemão. Deve-se lembrar que a força
dos acentos nas línguas germânicas – que justifica a contagem métrica dita acentual, frente à silábica nas línguas latinas – já por si faz prescindir, em parte,
da rima, por conta da musicalidade cadente.
Com relação a decisões
pontuais de tradução, a mais marcante é, com certeza, “é um toco?”. Essa foi
uma maneira sincrônica, atual – e desviante – de traduzir a expressão secular einen Korb geben/ bekommen (literalmente, dar/ receber uma cesta), que quer dizer rejeitar um pedido amoroso ou de casamento.
Minha opção procurou rejuvenescer o texto heineano. Cito Berman (2002: 122):
“Arrancado de seu solo, o poema corre o risco de perder seu frescor. Mas o
tradutor o coloca na taça da fresca de sua própria língua e ele floresce de
novo, como se ainda estivesse sobre o
solo materno”. Se se traduz por sobre o Tempo para um determinado tempo,
tal escolha se justifica por si própria. Ela possui, entretanto, outras razões
teóricas e práticas.
A primeira, com Venuti
(1995), que defende a tradução como estrangeirização,
como “pressão etnodesviante” (VENUTI, 1995: 20; trad. minha) nos valores (e na
língua!) da cultura receptora. É na marca, na cicatriz – para usar a metáfora
cirúrgica de Britto (2012: 38) – que se mostra a presença tradutória, a
intervenção textual, os percursos da “grande viagem” interlinguística.
A razão prática, por sua
vez, está em Vallias (2011: 33), que traduziu 120 poemas heineanos “almejando
um tom coloquial com pátina – porém sem poeira ou teia de aranha”. Seus textos
dão a lume, no tempo de hoje, um Heine palhaço, bobalhão, altamente moderno, um
Heine que faz jus à sua própria poética e usa a fantasia
como bobo da corte (“Als Hofnarr [diene dir] meine Phantasie”, Die
Nordsee, 1er Zyklus, 1 – Krönung).
Com a mesma visada
etnodesviante – e também por efeitos métricos –, justifico o uso de lido a cor por lido de cor. Aí se revela a
língua-outra, forçando a estrutura interna da língua-própria. Com relação a
essa construção, o “desvio” de sentido não é total, na medida em que o tom de
importância pomposa reforça a ironia. Além do mais, o fato de se ler o pedido pode evocar outros sentidos
– mais modernos – de Antrag: requerimento, formulário, petição. E –
não custa lembrar – toda leitura, mesmo a do “original”, faz-se no tempo
(presente).
Por fim, as inversões
finais – cérebro no penúltimo verso, poça depois de lágrimas –, como também a do quarto verso (digo eu só por logo que digo)
foram constrições do sistema rítmico/ rímico. Se enfraquecem a ironia final,
esta vê-se, entretanto, compensada em outros pontos. O resultado final,
acreditamos, não é de todo ruim. Mas se trata – obviamente – de um work in progress, cuja tendência é, para
jogar com uma phrase de nossos dias,
agregar valor (semântico, histórico, etc.).
Gabriel
Alonso é
estudante de Letras–Português/ Alemão na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Durante dois anos, desenvolveu pesquisa, com financiamento da UFF, sobre as
traduções de Heinrich Heine no Brasil, sob a orientação da profa. Susana K.
Lages. O texto aqui redigido resulta de um trabalho experimental de tradução.
Bibliografia:
Em
livros:
BARRENTO, João. O Poço de Babel: para um poética da tradução literária. Lisboa:
Relógio d’Água, 2002.
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e
tradução na Alemanha romãntica. Trad. Maria Emília Pereira Chanut. Bauru:
EDUSC, 2002.
BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
CAMPOS, Haroldo de. Transluciferação
mefistofáustica. In: ______________. Deus
e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981, pp. 178-209.
VALLIAS, André. Heine, hein?: poeta dos contrários. São Paulo: Perspectiva/
Goethe-Institut, 2011.
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History
of Translation. London/ New York:
Routledge, 1995.
Em
sites:
HEINE,
Heinrich. Neue Gedichte. Düsseldorfer
Heine Ausgabe. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1983.
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